Por que falar de cidades desde a perspectiva do CAMINHAR?
Assinado pelo SampaPé!, novo blog traz a cada post uma nova reflexão sobre as cidades a partir da experiência dos nossos pés
por Leticia Sabino e Ana Carolina Nunes*
Todos caminhamos nas cidades. Seja para entrar no ônibus, descer do carro ou acessar uma estação de trem ou metrô. O caminhar é o que nos conecta com os lugares, com outros meios de transporte, com os espaços públicos e o mais importante: com as pessoas.
O que pouca gente sabe é que o caminhar é, na realidade, o transporte mais utilizado nas cidades brasileiras. Segundo o relatório mais atual de mobilidade urbana da ANTP (Simob 2016), 41% dos deslocamentos nas cidades brasileiras são feitos exclusivamente a pé, ou seja, trajetos completos do ponto de partida até o destino final realizados por passos e passadas.
Se por um lado essa é a forma mais comum de se deslocar na cidade, é também a mais negligenciada. Seja pela falta de investimentos públicos, pelo seu desprestígio social ou mesmo pela falta de reconhecimento como um modo de transporte.
Um dos resultados mais drásticos desta negligência é a quantidade de pessoas que morrem diariamente atropeladas nas cidades brasileiras. Ou seja, pessoas que morrem de forma precoce pelo simples fato de estarem se deslocando pela cidade para acessar serviços e lugares. Segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária, no Brasil 6 mil pessoas morreram atropeladas no ano de 2016. Em São Paulo, no ano passado esse número chegou a 331, uma média de 6 pedestres mortos por semana, de acordo com dados da CET. Em sua maioria, são mortes evitáveis e com total conexão com a estrutura das cidades brasileiras, que é voltada para a fluidez de automóveis.
Cidades e deslocamentos como tema transversal
Engana-se quem pensa que se deslocar a pé é um tema que diga respeito somente à mobilidade. O caminhar é transversal e muito mais do que se deslocar. Nas palavras do urbanista dinamarquês Jan Gehl, “caminhar te leva de um lugar ao outro, mas também é muito mais do que isso” (tradução livre).
Quando pensamos e discutimos melhorias públicas para o bem comum, muito se fala em investir em educação, saúde e segurança pública. Visando melhores escolas, hospitais e polícia. No entanto, pouco se aborda de que forma as estruturas de nossas cidades são cruciais para garantir o acesso das pessoas a tudo isso, e como são base para gerar melhorias de forma integral e efetiva em todas estas áreas.
Felizmente vêm ganhando destaque nos últimos anos estudos e pesquisas que tratam das conexões entre esses temas há. Como por exemplo as pesquisas do médico, professor e pesquisador da USP Paulo Saldiva, em São Paulo. Ele relaciona mobilidade e saúde em suas pesquisas, buscando mostrar principalmente os vínculos entre a poluição do ar gerada pela estrutura da cidade e pela forma de deslocamento com doenças e problemas de saúde que são também os principais causadores de morte (como arritmia, ataque cardíaco), sobrecarregando assim o sistema de saúde e reduzindo a expectativa de vida. Saldiva destaca como “mobilidade é um problema sério e é um problema de saúde que não é encarado como tal “.
Outra expoente da visão transversal sobre mobilidade é a jornalista norte-americana Jane Jacobs, consagrada pelo livro Morte e Vida das Grandes Cidades de 1961. Sua obra versa sobre Nova York, mas é uma referência para todo e toda urbanista e pessoa interessada na vida urbana. Jacobs relaciona a segurança pública com a presença de pessoas na rua e a diversidade de usos da rua, ou seja, as diversas maneiras de estar e prover serviços e comércio no espaço da cidade). Em uma de suas célebres frases, ela destaca que “a calçada deve ter pessoas passando e a usando continuamente, tanto para aumentar o número de “olhos na rua” quanto para induzir as pessoas dos prédios ao longo da rua a observarem as calçadas”.
Mais uma visão transversal da mobilidade que ganha destaque é do pedagogo italiano Francesco Tonucci que relaciona o aprendizado e autonomia das crianças à estrutura urbana. Como exemplo, Tonucci conseguiu impactar a cidade de Pontevedra, na Espanha, que optou por dar espaço para o desenvolvimento das crianças. Isso foi possível aumentando as calçadas, diminuindo a largura das ruas e reduzindo velocidade, de modo a mostrar para as pessoas que estão nos veículos motorizados que elas não têm prioridade de circular no espaço urbano. Pelo contrário, elas devem entender a importância de garantir a segurança dos que estão caminhando, especialmente das crianças, que são muito vulnerabilizadas pela estrutura das cidades. Mesmo pessoas inicialmente contrárias a estas mudanças, logo percebem que quando as crianças se desenvolvem toda a sociedade se desenvolve.
O caminhar é, portanto, central para alcançar melhores condições de vida nas cidades, e por isso envolve e está relacionado à muitas áreas essenciais de desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos. É preciso tratar a mobilidade a pé com a prioridade que merece não apenas por se tratar da forma de deslocamento mais elementar e menos poluente, mas também por seu caráter esportivo, saudável, sociável e promotor da convivência. Caminhando estamos na cidade, usamos o espaço público, convivemos e confrontamos as diferenças, fazemos exercícios, aprendemos sobre os lugares que passamos, vemos e interagimos.
Caminhamos para cidades mais caminháveis
É motivado por todos esses fatores que, desde 2012, o SampaPé! atua para melhorar a experiência de caminhar na cidades, com qualidade, segurança e acesso. A organização acredita não apenas na importância de se promover o caminhar, mas também de usá-lo como ferramenta de diálogo e de transformações.
Por isso aceitamos o desafio de usar este espaço para falar do caminhar como forma de nos deslocar e também como forma de nos desenvolver enquanto sociedade. Este blog se propõe a discutir mobilidade urbana e a vida nas cidades de forma integral, mas a partir principalmente do ponto de vista da mobilidade a pé e suas conexões com outros temas de nosso cotidiano. Abordaremos questões de interesse de quem “usa” a cidade, mas não necessariamente detém conhecimento técnico sobre as principais questões que estão no debate. Afinal, viver e se deslocar na cidade é uma experiência diária de todas e todos.
Vamos caminhar juntos e juntas?
*Texto originalmente publicado no site da CartaCapital em 08 de novembro de 2018